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O Silêncio dos sinos, por Beth Azize

Atualizado: 18 de fev.

O Silêncio dos sinos, por Beth Azize
O silêncio dos sinos. Foto: Editora Valer, 13/02/2025

Quando as ruas eram cobertas por pedras e paralelepípedos portugueses, o bonde descia velozmente a ladeira da praça, fazendo uma curva com um som de freio para entrar na rua do mercado, dando o “ten-ten” pra avisar que a moçada não o morcegasse, essa freguesia era bem silenciosa, bucólica, aconchegante no seu calor e na sua cor.


E a gente tinha hora pra brincar, hora marcada pelo badalar dos sinos espalhados aqui e ali. A brincadeira podia estar no momento do pinga fogo, na hora da decisão do vencedor e do vencido, mas quando se começava a ouvir o tocar do sino da igreja dos Remédios, a turma começava a ajeitar as pernas para correr pra casa. Era hora do almoço.


E quando terminasse a última batida a gente já devia estar de mãos lavadas, sentados à mesa, e, à tarde, o mesmo ritual. Éramos livres até a batida da Ave-Maria, quando o rio Negro começava a ficar mais escuro, o sol desmaiando lá pras bandas do Cacau Pirera.


Os carapanãs começaram sua busca por sangue, ouvindo marotamente os tapas que lhes dão sem neles pegar. Era a hora do “passa pra casa”, a hora em que, para os mais crianças, o bicho-papão podia passar. E a gente se reunia como ovelhas indefesas ao redor da saia da Dona Olga, que ficava à nossa espera na porta do armazém. Só subia ela quando todo mundo já estava junto pra começar o jantar.


E, ali naquela roda de sangue, a gente ficava a ouvir as horas do cair da tarde anunciando a noite, vendo mamãe se benzer três vezes com os três dedos. – Bença, mamãe, bença, papai. – Deus te abençoe, mas vai subindo logo pra lavar esses pés e essas mãos!


E não só ali na igreja dos Remédios tinha-se o privilégio de ouvir as badaladas do Angelus e da Ave-Maria. Na igreja da Matriz, quando chegava às seis da tarde, mesmo que o relógio municipal estivesse parado, bastava o primeiro sinal de que o sino ia começar a tocar e os vendedores ambulantes começavam a desmanchar suas barracas.


A tacacazeira apagava o fogo do fogareiro, preparava a sua banca pra levar de volta para casa, arrumava as cuias, juntava o camarão que sobrava pro outro dia e colocava tudo sobre a cabeça, acima de uma rodilha. E a gente, andando pra cima e pra baixo, se benzia, as crianças estendiam a mão em forma de súplica, juntando os dedos e o olhar.


Na praça de São Sebastião, a meninada começava a se juntar para o debandar em grupo. Via-se crianças descerem do monumento, moleques que corriam acelerados da ladeira do Teatro local, escolhido para se brincar de manja. Era a hora da Ave-Maria, anunciada pelos sinos de toda a freguesia. Naquela mesma praça, o relógio da igreja de São Sebastião era a repetição da ordem do pai: - Passou das nove não entra mais em casa. O conceito de bom e mau comportamento era limitado e medido pelo horário, que se cumpria, segundo o depoimento de uma das frequentadoras daquela praça. E quando o relógio da igreja de São Sebastião começava a dar as nove horas da noite, era como se fosse um toque de recolher. Os namorados se agarravam na despedida, as crianças davam os últimos pulos, nos bancos, os mais adultos falavam de suas doenças para o dia de amanhã.


Dali das imediações da rampa dos Remédios, numa casa donde se avistava o Igarapé de Educandos, quando era dia de vento bom, ouvia-se os sinos da igreja de Educandos, jogando música para a cidade, e uma oração rezada pelo vigário todos os dias, às seis da tarde. E de lá do pátio eu chorava as primeiras lágrimas motivadas não sei o porquê. Nossos sinos se emudeceram, ou, se tocam, ninguém mais os ouve. Já não mais se distingue a hora da Ave-Maria nem a do Angelus. A cidade está ligada em outros ruídos desconfortantes, tão materiais e danosos.


Ninguém mais se benze na rua, nem tem ouvido pra escutar o som do carrilhão que transmite música de acalanto. E lá, na secular Bélgica, nas cidades de Nemur e Brugges, às seis da tarde, hoje, escuta-se todos os dias uma sinfonia de fim de tarde, quando todos os sinos da cidade tocam em uníssono, formando uma orquestra da qual o maestro está ausente, porque está em todo lugar. E aqui, o silêncio dos sinos só nos faz sentir que até a hora da ave-maria vai passando, vai passando.

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