O Boêmio dos Beiradões
- Reylloc
- 7 de fev.
- 3 min de leitura

Homem na canoa. Foto: internet, 04/02/2025
Toada alegre ressoava à beira do rio, em sequência a finas buzinadas, que se espalhavam em claridades:
“Aqui vai o Fura-Boi
Amigo de toda gente!
Não é o que era e o que foi
Nos tempos de antigamente!” ...
... “Fura-Boi”, cujo verdadeiro nome poucos sabem, narra as notícias ouvidas no beiradão, sem entrar na vida alheia para viver melhor. Histórias de namoro, politicagem, pescarias. O pessoal também conta as suas, e todos ficam a par de tudo.
...É o correio errante, o repórter ágil dos beiradões, e merece tanto crédito quanto as conversas dos regatões e das difusoras....
...Atracada a montaria, o cantador anunciava as suas habilidades, subindo a escada de torrões pisoteados pelos porcos:
“Vendo pão, vendo bolachas,
Vendo tabaco e farinha.
Compro peixe e melancia,
Compro ovo, pato e galinha.” ...
...Recita desafios, horas seguidas....
... ”Não é o que era, e o que foi
Nos tempos de antigamente!” ...
...Casou-se com dona de mau gênio, honesta, que não lhe perdoava a boemia e as cachaças.... Ficou sozinho, sem auxílios caseiros, batendo roupa no cedro e assando aruanãs (*²); venceu em sua maneira de viver, cantando e vadiando à vontade, sem dizer o dia da volta à barraca.
“Eu sou o “Fura-Boi”,
Vivo aqui e acolá.
Durmo no seco e na lama,
Salgando crista de galo,
Bebo cachaça e aluá.
“Eu sou o Fura-Boi”,
Não inzonzo ³ ou fracateio ³,
Vivo feliz, vivo só.
Só fico doido, se vejo
mulher, cachaça e forró.” ...
...Lembra a vida pregressa, no Amazonas e no Ceará...
“Tive sítio de moagem,
Casa-grande no Crato.
Hoje, na beira do mato,
Vivo fazendo viagem.
Sem fazer mal a ninguém.
Pergunta por que não volto
por que não vivo no Crato
e vivo à beira do mato.
Cruzeiro não é dinheiro.
No meu tempo, um vintém
Era o mesmo que cem cruzeiros!”
Assistiu ao casamento de um conterrâneo setuagenário, melhorado de situação no seringal, com uma órfã pobre da cidade, com dezesseis anos, saída do colégio para esse fim.... “Fura-Boi” não resistiu:
“Casamento é sorte danada.
Loteria de moça é risco.
O diabo entra no meio,
Quando se faz o sorteio.
O rosto da noiva é arisco,
O velho já baixa a cabeça
E só é alegre a rapaziada!” ...
... Parte, ouvindo pedidos – encostar a canoa na volta, dormir ali, - e desce o rio, quase ao léu da correnteza, porque irá suar na subida:
“Aqui vai o Fura-Boi
Amigo de toda gente!
Não é o que era e o que foi
Nos tempos de antigamente!”
(*1) Texto simplificado e poesia reproduzidos do Livro “Gente dos Seringais”, publicado por Álvaro Maia, no Rio de Janeiro, em 1956.
(*2) aruanã - termo de origem tupi-guarani, significa "sentinela da natureza". Nesse caso se refere a um peixe de água doce, da família osteoglossidae - conhecido como língua-de-osso. É carnívoro e habita rios, igarapés e florestas inundadas.
(*3) inzonzo - ficar zonzo, ficar estonteado, tonto, atordoado ou aturdido.
fracateio – (de fracatear – verbo intransitivo) enfraqueço, ou canso.
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