Uruá-Tapera: O Portal das Almas e a Presença do Grande Espírito
- Rodrigo Xavier
- 24 de jul.
- 4 min de leitura

O fascínio de Uruá-Tapera convida os audazes, situada em latitude 01º45'56" sul e longitude 55º51'58" oeste. Saibam, incautos, que a jornada promete aventura, temor, júbilo e pesar, pois ninguém lá chega ileso da saudade, esse tormento da alma que anseia pela presença amada, e dos mistérios de uma floresta sob a égide do Grande Espírito.
"A vida é um périplo de solidão e afeto", filosofava José, enquanto sua embarcação singrava as águas impetuosas do Trombetas. Em cada recanto de nossa existência, de solidão a solitude, encontramos aqueles que nos acompanham: familiares, amigos, colegas, vizinhos – almas que surgem e partem em nossa senda, seja ela breve ou longa. Em instantes efêmeros, buscamos uma companhia, seja para a inação do dia, para uma prosa satisfatória, para um vínculo perfeito ou para um mero companheiro de passagem. De porto em porto, de vila em vila, José congregava multidões, levando a boa nova, consolo e os víveres essenciais aos necessitados.
Naquela noite sem nuvens, que o sol do dia aquecera a ponto de deixar um calor intenso no ar amazônico, José contemplava a nebulosa de Órion. Quase imperceptível aos olhos desatentos, a pálida nuvem cintilava. "Ela repousa perto das Três Marias, o berçário ideal para o florescimento de novas estrelas em nossa Via Láctea. Em nossa morada, a Terra, a realidade não difere: cerca de 195 mil nascimentos pontuam cada dia. Tantos seres que nem sequer sabemos onde residem."
São novos rebentos do Grande Espírito, visitando o plano terreno para um ciclo de experiências mortais. A verdade é que apenas os vigorosos perseveram, e os mais resilientes desfrutam de maior longevidade. E alguns, senão miríades, jamais chegam a conhecer seus genitores. No entanto, a força redentora do Grande Espírito abraça a todos e os eleva ao firmamento. "Ali", apontou José para Órion, "onde as estrelas nascem, também habitam nossos antepassados e aqueles que já partiram."
Dentre milhões de microrganismos que almejavam fecundar o óvulo materno, apenas um, um solitário e audaz, alcançou o triunfo. Cresceu, desenvolveu-se sob o amparo materno. Chegou ao mundo desprovido de tudo, até mesmo das vestes corporais, transformando-se em uma criança doce e radiante.
Em uma tarde de calor sufocante, as paredes exalavam brasa, e uma jovem mãe banhava seu pequeno filho, dotado de uns quatro dentes, em um balde. Com a face inundada de alegria, a criança irradiava felicidade e alívio do mormaço. Brincava com a água e outros brinquedos, batendo as mãos na superfície, levando a água à boca e cuspindo, em meio a risos e gargalhadas, em um sobe e desce buscando imergir nas profundezas do pequeno balde de vinte litros.
A jovem mãe, imersa na labuta diária, descuidou-se e foi recolher as vestimentas que dançavam no varal. Ao sabor do vento ardente, as roupas secaram velozmente naquela tarde e já se desprendiam do varal. Pequenos animais poderiam sujá-las, e de quando em quando, uma chuva de verão repentina caía. Nesse ínterim, passaram-se meros trinta minutos, um lapso ínfimo no relógio materno.
"Contemplem as estrelas no firmamento", proferiu José, e todos ergueram o semblante. Ao alçar o rosto, forçando-o a se elevar, e aguçando seus olhares para fixar-se nas estrelas, José continuou: "Esses brilhos são meros reflexos do pretérito de cada uma delas no vasto cosmos. Não viveremos o bastante para testemunhar o nascimento nem o ocaso de uma estrela, mas podemos vislumbrar como eram através de sua luz. Mesmo que uma única estrela se apague, levará eras para que o percebamos, e talvez nem cheguemos a saber. Por isso, devemos zelar por aqueles que amamos, pois ignoramos o tempo que nos resta e o tempo que terão para viver em harmonia."
Um véu de melancolia envolveu a mãe, ao se afastar da criança, incapaz de decifrar aquela angústia. Imaginava ter esquecido algo que demandava atenção urgente. Ao deixar as roupas dentro da morada, um Urubu-Rei pousou no quintal. Imediatamente, a mãe recordou-se do filho e saiu em desespero, seus passos transformaram-se em corrida, sua respiração ofegante beirava o colapso. Aquela casa jamais parecera tão vasta e repleta de entraves quanto naquele instante. Ela bradou: "Socorro! Ajuda-me! Por favor, ajude-me!"
Não encontrando a criança no balde, ela derramou a água, seu coração disparado impedia o raciocínio, e o pranto irrompeu. Chorava, clamando por auxílio, convicta de que algum animal selvagem levara seu bebê. E gritou com tal veemência que as aves, espantadas, voaram para outras paragens. De joelhos, segurando o balde, descrente de que, por um instante de descuido, uma onça pudesse ter levado seu filho.
A dor não tem par. A mãe cobriu o rosto, implorando ao Grande Espírito que livrasse a criança de um fim trágico. Ao abrir os olhos, discerniu que seu pequeno irmão estava à beira do igarapé, banhando o bebê. Imediatamente, a ira e o regozijo mesclaram-se, mas a euforia prevaleceu, pois correu para abraçar o filhinho e prometer jamais se afastar dele novamente.
Esse foi o primeiro desafio evidente da jornada de José em Uruá-Tapera, um teste sutil do Grande Espírito, que o ensinou que, além da boa palavra, a presença atenta e a vigilância são as mais poderosas formas de consolo e salvação. A floresta, protetora e mística, revelava seus próprios desígnios, e José, o Arauto, começava a entender que sua missão ia além de levar suprimentos; era sobre guiar as almas perdidas pelo vale da aflição, um arauto da esperança em um mundo onde a luz e a sombra dançavam em constante harmonia. O verdadeiro mistério de Uruá-Tapera não estava em suas coordenadas, mas na capacidade de revelar a força inabalável do espírito humano diante da adversidade, sempre sob o olhar atento do Grande Espírito.
Uruá Tapera, Mito & Lenda original - Por Rodrigo Xavier (1986, atual)
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